. LIBERDADE RELIGIOSA

22/05/2018

Kellen Josephine Muniz de Lima

1. LIBERDADE RELIGIOSA: Uma breve contextualização

 Na Constituição Federal Brasileira de 1988, a liberdade religiosa, enquanto direito fundamental, está presente em seu artigo 5º, VI, VII e VIII. O Art. 5º, VI estabelece e define o conteúdo constitucional da liberdade religiosa no Direito brasileiro, delineando os elementos constituintes de tal direito: liberdade de consciência e de crença. Portanto, a Constituição Brasileira, que, como as suas antecessoras, consagra o princípio da laicidade, garante também o direito fundamental à liberdade de crença e de consciência (BRASIL, 1988). Essa liberdade de consciência e de crença, a priori, dirige-se contra o Estado, ou seja, retira do ente estatal a possibilidade de impor uma crença aos cidadãos, ao passo que também lhe proíbe de impedir o livre pensar e a livre escolha da fé. Portanto, o discurso e a proteção da liberdade religiosa, no âmbito constitucional, têm como destinatário a figura do Estado (SILVA NETO, 2008). A atual concepção do direito à liberdade religiosa apresenta uma feição nunca antes verificada, o que é perceptível quando se necessita, além de um Estado laicista, de um Estado colaborador para tanto, posto que, a liberdade religiosa não se reduz à simples aceitação da diversidade pelo Estado, devendo este criar medidas de igualação entre as minorias religiosas e as instituições dominantes (MIRANDA, 2000). Para Silva Neto (2008), em razão do princípio da laicidade, o Estado tem a obrigação de garantir e proteger o exercício pleno dos seguintes direitos derivados da liberdade religiosa e de consciência: 1) a liberdade do indivíduo de ter crença religiosa ou não; 2) a liberdade do indivíduo de professar a sua fé religiosa, caso a tenha; 3) a liberdade do indivíduo de trocar de religião; 4) a liberdade do indivíduo de não ser perseguido nem ofendido em razão de suas escolhas religiosas; 5) a liberdade dos familiares de decidirem pela educação religiosa, ou não, de seus descendentes; 6) a garantia de que esta educação religiosa não se choque com suas convicções, mas que as respeite; 7) a garantia de não ser discriminado em função de sua(s) crença(s). Juntamente à liberdade de consciência, a Constituição de 1988, em seu art. 5º, VI, traz também a liberdade de divulgação de crença, que consiste na possibilidade de o adepto professar sua crença e envidar esforços no sentido de conseguir novos fiéis, é o que se denomina proselitismo. Ressalte-se que este âmbito da liberdade religiosa é também protegido por outro direito constitucional, qual seja, a liberdade de expressão, que em conjugação com o direito em apreço, se configura em liberdade de expressão religiosa (TAVARES, 2008). O direito à liberdade religiosa, além de estar assegurado pela Constituição Federal de 1988, também encontra proteção na legislação infraconstitucional (Lei nº 9.394/96, Lei nº 4.898/65, Lei nº 7.716/89, etc.), bem como em Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos; Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções; Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas; a Declaração de Princípios sobre a Tolerância. Consoante se percebe, o Brasil dispõe de um robusto arcabouço constitucional e infraconstitucional de proteção ao direito fundamental à liberdade religiosa, todavia, ainda são muitos os casos de intolerância e violência no campo religioso. 

2. MAS O QUE É INTOLERÂNCIA RELIGIOSA?

 O filósofo John Locke (1987), já em 1689, em sua célebre obra "Carta sobre a tolerância", tratou profundamente sobre a questão da tolerância na esfera religiosa, de tal modo que a consagração do direito à liberdade religiosa, no ocidente, está intrinsecamente associada à sua obra. Para o autor a intolerância está diretamente ligada ao fato de as religiões dominantes acreditarem ter o dever de levar a verdade (única e absoluta) às igrejas heréticas. De fato, a intolerância exercida no campo religioso está intrinsecamente relacionada com o etnocentrismo e com a hegemonia de determinadas religiões em detrimento de outras. Deste modo, a intolerância religiosa representa uma forma de reduzir a crença alheia por meio da manifestação de violência física, psicológica ou, até mesmo, simbólica, diante das diversas concepções de fé. Neste sentido, o que caracteriza a intolerância é a exteriorização preconceituosa e violenta de uma verdade tida como absoluta, podendo tal intolerância se revestir de traços ainda mais fortes, como no caso do fundamentalismo e do fanatismo religioso. No Brasil, as manifestações da religiosidade de matriz africana, apenas para citar um exemplo, são alvo comum de atos de intolerância decorrentes, entre outras razões, das diferenças culturais, étnicas, raciais e econômicas historicamente existentes entre "brancos" e "negros", colonizadores e colonizados. Ainda nos dias atuais, em que se prega a inexistência do racismo em nossa sociedade, vemos que as crenças e práticas das religiões de matriz africana habitualmente sofrem distorções de seu significado, herança ainda dos tempos da Colônia. As notícias veiculadas com frequência dão conta de que os casos de intolerância religiosa no Brasil, antes apenas isolados e sem grandes repercussões, hoje se avolumaram e ganharam visibilidade pública, conforme demonstram frequentes notícias midiáticas. Em contrapartida, a reação a estes casos, antes tímida de algumas poucas vítimas, agora se faz em termos de processos criminais levados adiante por pessoas físicas ou instituições públicas, como ONGs e até mesmo a Promotoria Pública (SILVA, 2007). A Agência Brasil de Notícias, em reportagem publicada em 21/01/2016, informa que o número de denúncias relacionadas à discriminação religiosa aumentou 70% no ano passado (2015) no Brasil na comparação com o ano anterior (em 2014 foram 149 denúncias), chegando a 252 denúncias, o mais elevado patamar registrado desde a criação do Disque Direitos Humanos há quatro anos. Os dados foram divulgados no Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa (21 de janeiro), pela Secretaria de Direitos Humanos do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Diante do agravamento da intolerância religiosa, líderes de diversas matrizes religiosas se uniram para criar uma rede nacional de proteção para as vítimas desse tipo de crime (PONTES, 2016). 

3. O AVANÇO DO FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

 O surgimento do fundamentalismo religioso, uma espécie de devoção militante, configura um dos fatos mais alarmantes do século XX. Ele (o fundamentalismo) não está interessado em democracia, pluralismo, tolerância religiosa, paz internacional, liberdade de expressão ou separação entre Igreja e Estado (ARMSTRONG, 2001). Trata-se, pois, de um pensamento único que não admite a diversidade ou a tolerância, e que procura manter o monopólio da "verdade revelada" (SANTOS, 2011). O fundamentalismo surgiu entre os protestantes americanos no início do século XX. Os fundamentalistas entendem que as Escrituras não servem apenas para pautar a vida privada dos fiéis, mas que sua autoridade se estende além do domínio religioso, contendo regras que servem para pautar a vida privada e a pública (BORGES, 2009). Diversos são os fundamentalismos religiosos (cristão, judaico, islâmico, hindu, etc.), mas todos são formas espirituais combativas e apresentam características em comum, dentre as quais podemos listar: rejeição de muitas das conquistas da cultura liberal, empenho em inserir o sagrado no campo da política e da causa nacional, defesa de uma Verdade Única representada por um Deus Único (portanto intolerante quanto aos pluralismos religiosos), a defesa ortodoxa e extremista dos pontos fundamentais da fé, a leitura do mundo enquanto uma luta travada pelas forças do bem contra o mal (ARMSTRONG, 2001). Essa defesa de uma Verdade Única conduz ao extremismo, à intolerância e à violência. A pluralidade de confissões religiosas, portanto, representa algo inadmissível para os fundamentalistas. Sendo a sua religião a detentora da Verdade Única revelada diretamente pela divindade, só conseguem ver as outras religiões como rivais cujo o extermínio é necessário (CHAUÍ, 2004). Cria-se, então, o campo propício para a batalha na qual a intolerância religiosa figura como um soldado disposto a defender a Verdade única e exterminar os pluralismos. Especialmente no campo da política, Karen Armstrong (2001) e Marilena Chauí (2004) assinalam que os fundamentalistas não veem essa luta como uma batalha convencional, e sim como uma verdadeira guerra cósmica entre as forças do bem e do mal. A política, portanto, cede lugar à violência como agente de purificação contra o Mal, e os políticos dão lugar aos profetas, intérpretes da vontade divina, e portanto infalíveis. A busca pela retomada do esppaço da religião na vida pública hoje se dá em termos de fenômeno global. A esse fenômeno Boaventura de Sousa Santos (2014) dá o nome de "globalização da teologia política". As teologias políticas questionam a distinção entre espaço público e privado e reclamam uma maior intervenção da religião, enquanto mensagem divina, na esfera pública, ou seja, na organização social e política da sociedade (SANTOS, 2014). Seguindo este movimento de globalização da teologia política, tem se consolidado no Brasil a influência religiosa na estrutura política do Estado. Esse fenômeno de expansão de segmentos religiosos fundamentalistas vem conquistando um crescente protagonismo na esfera política, principalmente pelo que se passou a denominar como "bancada evangélica" que, em 2013, era composta por 68 deputados e 03 senadores, correspondendo a segunda maior bancada temática do Parlamento, só perdendo para a bancada ruralista (VITAL; LOPES, 2013). Junto com essa expansão política dos segmentos fundamentalistas, notase também o fortalecimento de um pensamento conservador e intolerante, o que traz como consequência uma agenda política comprometida com a defesa de valores morais e com o esmagamento dos movimentos de emancipação (especialmente os feministas e LGBTs). Trata-se, portanto, de uma pauta comprometida com a manutenção das opressões. A intolerância, pois, também é alimentada e fortalecida neste cenário, e é exercida no campo religioso como uma forma de reduzir a crença alheia por meio da manifestação de violência. No projeto fundamentalista os pluralismos religiosos não são toleráveis, reprimir o diferente e o discordante é uma operação justificada em nome de uma Verdade Única. Consiste, pois, em uma exteriorização preconceituosa e violenta desta verdade tida como absoluta, ferindo princípios erigidos pela Constituição Federal de 1988, a exemplo do direito amplo à liberdade religiosa. 

CONCLUSÃO

 Sabe-se que a coexistência pacífica entre seres humanos distintos em valores sociais, culturais, ideológicos, antropológicos, políticos, e também religiosos e de crença, somente é possível devido à existência de leis garantidoras das liberdades individuais. É o que garante a diversidade, dando a todos iguais direitos e impondo iguais deveres. É a dita igualdade formal, garantida em nossa Constituição Federal de 1988 em seu Artigo 5º. Consoante se depreende do exposto nos itens anteriores, no campo das liberdades individuais, a efetiva proteção da liberdade de ter ou de não ter uma religião ganha importância ainda maior no cenário atual, pois em geral, as minorias religiosas estão sendo massacradas pelo avanço do fundamentalismo e da intolerância religiosa, ao tentarem exercer seus direitos de professar uma religião diferente daquela dos grupos majoritários. Como se viu, apesar da existência de um robusto arcabouço constitucional e infraconstitucional de proteção ao direito fundamental à liberdade religiosa no Brasil, ainda são muitos os casos de intolerância e violência no campo religioso. 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 ARMSTRONG, Karen. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 

BORGES, Anselmo. Religião, religiões e diálogo inter-religioso. Revista Portuguesa de História, Coimbra, n. 40, p. 9-44, 2009. 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de out. de 1988. Disponível em: . Acesso em: 12 de fev. 2016. 

CHAUÍ, Marilena. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológicopolítico. In: NOVAES, Adauto (org.). Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 149-169.

 LOCKE, John. Carta a respeito da tolerância. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1987. 

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000.

 PONTES, Felipe. Denúncias de discriminação religiosa aumentam 70% no país, revela Disque 100. Agência Brasil, Brasília, 21 jan. 2016. Disponível em: < https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-01/denunciasde-descriminacao-religiosa-sobem-70-no-brasil-mostra>. Acesso em: 16 fev. 2016. 

SANTOS, Boaventura de Sousa. A globalização religiosa - entrevista com Boaventura de Sousa Santos. Cronos, UFRN, Natal, v. 12, n. 1, p. 158-160, jan./jun. 2011.

 ______. Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos [livro eletrônico]. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2014. 

SILVA NETO, Manoel Jorge e. Proteção Constitucional à Liberdade Religiosa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 

SILVA, Vagner Gonçalves da. Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2007. 

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

 VITAL, Christina; LOPES, Paulo Victor Leite. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2012


1 Mestra em Direito, área de concentração em Direitos Humanos pela Universidade Tiradentes. Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB/SE. Professora Substituta da Universidade Federal de Sergipe. Professora Assistente I da Universidade Tiradentes - UNIT. E-mail: kellen_muniz@yahoo.com.br.  

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